sexta-feira, 9 de maio de 2008

Inconsciente ótico

Foto de Sabine Weiss, fotógrafa Suiça (1924-), Restaurat Coquet, Paris, 1954.

Sabine escreveu: “Eu gosto muito deste diálogo constante entre minha máquina e meu sujeito, isto é o que me diferencia de alguns fotógrafos que não procuram este dialogo e que preferem distanciar-se do seu sujeito.”.

De que ando por meus passos perseguido, pesos, possíveis presságios. Sempre, sempre sem, sempre aqui no futuro do pretérito. Se estou tomando café no balcão, se estou servindo, se estou passando de carro, se te dou um beijo de adeus ou se sou por você ardentemente beijada. Se sou um desses homens, se sou uma dessas mulheres, se sou algo, se sou o fotógrafo, se estou desse lado ou do outro da calçada. Se vi o que se vê, se viu-se o que se veria, se víssemos, se nos veriam, se nos verão. Se fosse aqui, em algum lugar teria sido, se foi, se seria, se tiver mesmo sido. Com quem, qual quem, alguém, algum, ninguém. E o que era ainda é? O que ficou preso na fotografia, o que se libertou, o que está presente pra quem vê, o que está e não se vê, o que não se veria, o que ficou ausente, a presença do que não há, do que não é, do que não teve permissão, do que não foi visto, do que foi permitido, do que, de quem. O que foi perdido, o que foi encontrado, o que se encontrou, o que se encontraria, o que seria o encontro. De que não é lembrança, de que não me pertence, de que não foi comigo, de que não fui eu e ainda assim meu, seu, nosso, Dele. De onde veio? De onde vim? De onde se vem? De onde se vai? De que não é preciso e é assim tão justo. De que é só um instante e por isso mesmo eterno retorno. De lá pra cá e de cá aqui, longe, como todos os pertos parecem ser, perto, como todos os longes são: melancolia. E ela sendo plástica e talvez só palavra, que permeia tudo, que penetra em falta, rainha das ausências, preta e branca ou cinza, sempre como que se retirando, posta, postulada e postiça, invisível a olhos nus, cobrindo os corpos, pela lente, pele lenta, ela está. Se até assim, na sua frente:saudade.

Soldado

Foto de Robert Capa, nome artístico do fotógrafo húngaro Andrei Friedmann (1913-1954).

Só morre quem sente o abraço. Não adianta abrir os braços e deixá-los assim: ao aberto. Há que se abraçar a Dama do Descanso. Quem te arrancou o amplexo, Miliciano? Quem em imensa crueldade o deixou suspenso: membros escancarados, cabeça tombada no espaço, lábios tortos, garganta engasgada? Miramos o oco do grito mudo de sua arma, goela calada, apontada para o céu, já não mira mais: admira-se que estará para sempre na mão de sua estátua ferida. Quem te deixou para sempre assim: sem leito, sem sepultura, sem o envolvimento do chão? Quem, Miliciano Legalista Frederico Borrell Garcia, quem te deixou em vôo estático, para sempre ferido à bala, sem repouso?

O fotógrafo, impiedoso, o deixou assim: suspendido na pausa da eternidade.

Só sua sombra sobre o solo sossega.

Vagina

Foto de Sybele Badran. Sybele é designer gráfica, finalizadora, ilustradora.

Passasse eu por estreita frincha:
Conhecesse a seiva de suas entranhas:
Cruzasse o arco do contorno:
Fosse tronco nos músculos de seu núcleo:

Observo: meus olhos são dois sóis a manchar o concreto do seu corpo.
A arquitetura do anel dos seus lábios:
Dentro: mais profundas e verdes: outras vaginas, mais selvagens, mais virgens.
Mata: espreitam-me suas raízes.

Enfrentasse mistério vagem, com a espada de me perder entre seus cortes, entre suas faces riscadas no oculto das sucessivas gretas: não temesse os vagidos silenciosos, reflexos das mudas do meu peito.

Observo: fotografo o que espera a penetração.

O Fotógrafo

Henri Cartier-Bresson, fotografo francês (1908-2004) .

Mútuo reconhecer instantâneo: a vida vira foto quando reconhece o fotógrafo e este reconhece a vida.

Ele ficava o dia todo em frente ao mundo pronto a captar um triz. Fazia amor com Leica até que sumisse e só ela. Tirava a foto quando conseguia virar o que fotografava. Com um estilete mudo, cortava uma fatia do visível. O momento decisivo, ele dizia, é aquela fração de segundo em que todos os elementos de uma situação rotineira entram em perfeita harmonia.

Subamos a escada caída para o infinito do espelho, então.

E fica a prova concreta de que se pode andar sob as águas.

Que tudo que está em baixo é foto do que está em cima.

E a vida, é pra que lado afinal?

terça-feira, 6 de maio de 2008

Planos

Foto de Kity Feo. Kity é cineasta e fotógrafa.

Tomássemos o último avião e a boca do céu quase fechasse. Viajássemos assim no sorriso que restasse das trevas dos últimos dias. Aonde iríamos, meu amor? Cruzássemos o topo da cruz elétrica ou parasse assim para sempre nosso aeroplano. Para sempre assim nossos planos, flutuando plenos entre o pior de nós e o que voasse. Sem que tais vapores escuros nos tocassem, em vôo suspenso, em repouso eterno.

Nunca pousássemos nos dentes das fumaças.

Pontes e Meadas

Foto de Paulo Prestes Franco. Paulo é cineasta, videomaker, editor de imagens e tudo mais.

Quanto mais uma conversa é realmente uma conversa, menos o seu desenrolar depende da vontade de um ou de outro parceiro. Assim, portanto, a conversa efetivamente mantida jamais é a que queremos manter. Pelo contrário, em geral é mais exato dizer que somos arrastados, para não dizer enredados, numa conversa. Hans-George Gadamer, em 'Verdade e Método'

“Fotografia e Saudade”, o blog, surgiu de uma brincadeira em meu outro blog "Companhia Solitária" (www.leolama.blogspot.com). Comecei a escrever legendas, ou algo assim, para as fotos preferidas de minha amiga, a cineasta Kity Feo. Resolvi ampliar esta tentativa de se criar um diálogo entre imagens falantes e palavras imagéticas aqui neste novo espaço. E já começo a pensar:

Tudo é linguagem? Tudo que existe é falante? Se assim for, as imagens são palavras visuais. Então, para que legendá-las se já dizem? O que dizem? Ver é relembrar? Dizer é traduzir? Verter para outra língua é adulterar? Recriar? A tradução carrega em si uma saudade, uma melancolia do que era, do que foi primeiro. Assim é a fotografia, como a palavra, uma reminiscência, a suspensão de um momento, um convite à recordação, à revisão.

São muitos os sentidos tanto das palavras como das imagens. O que vemos, ouvimos e lemos, é apenas um recorte possível. Portanto as atividades de ver, ouvir, ler e até sentir, podem estar subordinadas à intuição de que há outras percepções além daquelas que percebemos. Nada é definitivo. Um olhar, uma palavra, um gesto, é uma perspectiva, um ângulo. Cada percepção deve abrir espaço para outra, deve ser uma ponte que nunca acaba. Cada ângulo, cada olhar, cada dizer, deve supor outro até que todos os sentidos sejam possíveis, como uma fotografia caleidoscópio. Que tal?

Meu intento é brincar com a beleza (diferenciando o belo do bonito) das imagens e das palavras, evidenciando-as de forma poética, que talvez seja a única forma de nos salvarmos da mudez árida que se anuncia, causada pelo excesso de comunicação.

Diz mais quem silencia. Diz algo que não fecha.