sexta-feira, 30 de maio de 2008

No Castelo da tristeza em Processo estanque de Metamorfose

Kafka aos seis anos de idade.

“Poucas vezes a pobre e breve infância concretizou-se em imagem tão evocativa. A foto foi tirada num desses ateliês do século XIX, que com seus cortinados e palmeiras, tapeçarias e cavaletes parecia um hibrido ambíguo de câmera de torturas e sala do trono. O menino de cerca de seis anos é representado numa espécie de paisagem de jardim de inverno, vestido com uma roupa de criança, muito apertada, quase humilhante, sobrecarregada com rendas. No fundo, erguem-se palmeiras imóveis. E, como para tornar esse acolchoado ambiente tropical ainda mais abafado e sufocante, o modelo segura na mão esquerda um chapéu extraordinariamente grande, com largas abas, do tipo usado pelos espanhóis. Seus olhos incomensuravelmente tristes dominam essa paisagem feita sob medida para eles, e a concha de uma grande orelha escuta tudo que se diz.” Walter Benjamim em Fraz Kafka, a propósito do décimo aniversário de sua morte.

“Era como se a vergonha devesse lhe sobreviver...”. Franz Kafka em O Processo.

Tristeza de cão

Foto de autor desconhecido.

Não ter um rosto entre os soldados.

Não ser um rosto entre os soldados.

Não ter um gosto entre os soldados.

Não ter um posto entre os soldados.

Não ter composto entre os soldados.

Não ter encosto entre os soldados.

Não ser encosto entre os soldados.

Estar deprimido entre os soldados.

Estar comprimido entre os soldados.

Estar dividido entre os soldados.

Estar esquecido entre os soldados.

Estar em marcha entre os soldados.

Estar em marcha contra os soldados.

Ser uma mancha entre os soldados.

Estar machucado entre os soldados.

Ser soldado vivo entre os soldados.

Ser um sol dado entre os soldados.


Ser um cachorro entre os homens.

Ser uma árvore entre as almas.

Ser um morto entre os mortos.

Ver um fantasma entre os homens.


Estar trôpego na tropa.

Estar preso na trompa.

Ser trauma na turma.

Ser trânsito no tráfego.

domingo, 25 de maio de 2008

Tempestade de Promessas Quebradas

Foto de autor desconhecido. Homenagem ao blog “Admiradores de Varais”.

Lento no luar lá fora, na noite lenta, o vento agita coisas que fazem a sombra mexer. Não é talvez senão a roupa que deixaram estendida no andar mais alto. Mas, a sombra em si não conhece camisas e flutua impalpável, num acordo mudo com tudo.
Fernando Pessoa, fragmento 145 do Livro do Desassossego.

É melhor quebrar ossos do que promessas. Provérbio chinês.

Aqui exponho o que me foi projetado, se estou perdido em confusões, sou o único culpado. Perdi várias oportunidades de ficar calado. Mesmo assim sigo contando e sei que estou sendo contado. São minhas as visões, não estão em nenhum livro revelado. Talvez sejam apenas alucinações de um coração magoado. Talvez sejam sonhos de alguém que jamais deveria ter sonhado. O que vi está visto e minha cegueira é a prova do que foi visado.

Vi uma tempestade de promessas que não foram cumpridas caindo do céu como se todos os anjos estivessem revoltados. E vi palavras queimando bocas como se os verbos do amor não pudessem ser pronunciados. E vi arcanjos baixarem o que estava em cima e vi o mar generalizado. Vi que as águas eram correntezas de corações engasgados. Vi nadarem sobre nossas cabeças tubarões caçando tolos apaixonados. Vi beijos falsos serem comidos pelas terríveis línguas de pássaros assassinados. Plantas, flores, bichos, gentes, prédios, carros: tudo e todos pareciam estar sendo cobrados. Entre os postes, um imenso varal de enforcados. Entre os dentes dos demônios: ossos quebrados. Plantas, flores, bichos, gentes, prédios, carros: todos estavam sendo enxergados. Cada qual com a medida dos seus próprios olhos e com o reflexo do olhar Daquele que olha tudo que é olhado.

Com meus olhos eu vi e com os próprios fui fotografado. Em verdade, são tais visões que me têm revisado. Vi que vendo eu minto e não sinto o sentimento que não deve ser verbalizado. Não sei tocar, nem me deixar ser tocado. Vi que o sentir elevado está longe do que eu tenho buscado. O que eu digo ser, é o contrário do que eu tenho falado. Entendi que cada “eu te amo” que eu disse me será cobrado. Assim como todos os “eu estou apaixonado”. Não sou peixe, não sou pássaro, não me sinto planta, não me sinto flor, nem bicho, nem gente, nem prédio, nem carro. Vi o horror dos que não cumprem promessas e dos que traem o que lhes é confiado. Vi que chovia e eu não estava molhado, percebi meu sorriso chamuscado. Vi que o que eu tenho guardado não é segredo e está estupidamente trancado. E assim eu me fui revelado: olhei para mim e não me vi, porque eu ainda não fui criado.

31/12/2000. Passagem do ano em Lisboa.