quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Abu Ghraib

Duas fotos já consideradas “clássicas” tiradas pelos próprios soldados americanos na prisão iraquiana (a maioria tiradas por soldados mulheres). O grande escândalo de Abu Ghraib, em 2003, quando foram divulgadas as fotos de detidos naquela prisão em situações de tortura e humilhação. Justificadas como sendo "procedimento operacional padrão", nome do novo documentário do cineasta Errol Morris, ganhador do Grande Prêmio do Júri (Urso de Prata) no Festival de Berlim de 2008. O documentário investiga os personagens e os motivos por trás dos crimes. As fotos foram tiradas por três câmeras que captavam as poses de vários ângulos. Os soldados estavam sempre sorrindo e fazendo gestos de positivo. Entre eles a soldado Lynddie England, que pode ser vista puxando um prisioneiro por uma coleira de cachorro.



terça-feira, 9 de setembro de 2008

O Andrógino


Foto de Cláudia Andujar: Ianomami - O Ser Humano.


Um homem ou uma mulher, só se tornam Seres Humanos quando se tornam Adão.


sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Seio da Alma

Foto de Jan Saudek.

Seus mamilos chorarem na mais completa solidão. O desperdício escorrendo pelas torneiras do seu corpo de mulher, que o desejo é dor, lágrima de pus, ninguém a sugar o néctar, que o amor pingava e dizia poças nos lençóis do abandono. Entre suas pernas o sangue seco do vazio cu.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Das coisas que D-us permite



Fotos de reportagem histórica do jornalista Richard Dimbleby.

Tenho mais medo de D-us do que do diabo.

domingo, 24 de agosto de 2008

Braços

Foto de André Kertész, Central Park, NY -1944

"Salvar uma vida é como salvar o mundo". O Talmud

Há vasos bons e veias vivas que não rompem. Carrego um peso que não é meu, mas se aliviar para você me é leve: seu corpo em minhas flores.

Ancorado no céu do seu porto, sigo as ordens do Único e Verdadeiro Capitão. Ao mar: o que seria de nós sem os espelhos? Vejo frestas do firmamento refletidas nas águas que vertem de seus orifícios. Navego.

Salvo seu coração como salvasse um barco, querida, meus braços ofereço como fossem o pélago. No escuro, a vela: um sopro a apaga e a impulsiona. Paradoxos da linguagem da vida. E lá de cima a morte nos observasse: precipício doce sem precipitações.

Vem, assim, ainda, nademos sem salvação. O peixe não quer segurança, quer salto sem rede. E toda a perplexidade de não haver âncora.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Dicionário de lugares que não existem

Foto de Michael Kenna.

Nosso encontro teria sido... Eu te diria... Ah, todo mundo diz tanta coisa, eu... Pensei que você soubesse de um lugar, acho que eu te falei, com certeza não falei. Não sei, eu teria combinado de te encontrar, você... Eu não fui... Eu não iria, você sabe, você nunca apareceu... Os lugares nem deviam existir; nós não seríamos obrigados a marcar encontros, fazer planos... Uma vida assim tão triste, cheia de medos, sem entrega, sem nossas melhores intenções, melhor assim. Ah, os homens estão com medo de você, querida, onde quer que você vá, cada um deles te dirá que... Que nada... Ninguém vai se entregar a você assim tão fácil. Tudo é prisão, pequenas mortes que não curam, que não atravessam... E você queria tanto sentir o amor, sentir o sal da vida, ver as luzes da loucura-catedral: os homens estão com medo.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Tocando Fantasmas

Foto de autor desconhecido.

Minha mão esquerda é sua mão direita. Seu corpo é mar...

domingo, 3 de agosto de 2008

Corpo de Saudade

Duane Michals, na década de 60, foi um dos primeiros fotógrafos a trabalhar a seqüência fotográfica de forma expressiva, às vezes utilizando textos escritos, outras a narrativa fotográfica não-verbal. Em suas histórias curtas explora cenas casuais, bizarras ou espiritualistas. Em muitas das seqüências, as cenas desenvolvem-se com a câmara parada, sem mudança de enquadramento, dupla exposição e velocidades lentas do obturador. Michals vai influenciar uma dupla (Peeters/ Plissart) na elaboração de uma série de roman-photo. Droit de Regard , uma seqüência de ensaios fotográficos, sem nenhuma legenda ou texto escrito. Desta me sirvo.

F – Eu vou sentir saudade do seu corpo, tanta.

J – Eu não tenho mais onde me segurar.

F – Agora eu me lembro. Eu fiz amor com você.

J – Você faria de novo?

F – Eu faria.

J – Como seria?

F – Eu começaria lambendo os bicos dos seus seios. Devagar. Salgado, doce, agridoce, nenhum gosto definiria seu gosto. Seu gosto seria o seu gosto. Lamber o corpo da amada seria uma arte prévia, uma premonição, uma promessa. Eu já saberia como você gostaria de ser chupada nos mamilos. Muito antes de te conhecer eu saberia. Nosso encontro seria uma memória física. Eu daria leves mordidinhas, circundaria a forma deles com a língua. Paladar tátil. Gula. Você já seria minha antes de ser.

J - Eu sentira espasmos. Tremeria na cama como se uma onda elétrica me desse choques pelo corpo todo. Arrepios desinformariam meu cérebro. Eu estaria desorientada, descontrolada, com tesão. Eu nasci pra ser sua que em outras bocas eu era uma perdida.

F - Eu desceria. Minha boca me guiaria. Eu te tocaria com a boca, com a língua, a sua geografia portuguesa. Seu corpo, aquele corpo, seu corpo, o corpo de quem a gente ama com a boca, não pode estar sempre salivado. Seu corpo precisa comer, dormir, andar, fazer coisas, torturas que exige-se de um corpo. Minha boca te mataria de tanto te chupar. Eu te morderia e te aprisionaria em meus dentes. Seu corpo não sairia da minha boca.

J - Entre as minhas pernas, meu amor, você me chuparia. Chuparia, sugaria, lamberia, sentiria meu movimento: frêmitos, meu amor, espasmos. Eu diria: “Assim, chupa, assim, eu quero que você me coma.. Me chupa, me chupa, não deixa sobrar nada, amor, nada!”

F – Eu diria: “Goza na minha boca, Fernanda, goza seu mar na minha boca. Sua poesia líquida, seu trabalho úmido, seu suor sagrado. Baba em mim sua fé, sua angústia, seu desespero de viver, explode esse gozo na minha cara. Eu nasci pra te beber, pra te consumir feito fogo. Eu tô com sede, Fernanda, eu tô com sede, meu amor! Verte a sua água mais pura, seu jorro mais caudaloso, sua porra mais minha”.

J – Eu diria “Bebe, Joaquina, bebe. Eu te quero bêbada do meu gozo, do meu absinto útero, dos meus corrimentos, das minhas fontes. Eu tô gozando, meu amor, eu tô gozando na sua boca toda a esperança do meu coração, todas as mortes da minha vida, todas as vidas da minha morte”.

F - Meu Deus, eu morri de saudade de você!

J – Eu morri de saudade de você, meu amor!

(Cena da peça "Saudade"de Leo Lama.) .

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Janela da Alma

Hermeto Pascoal em foto do filme “Janela da Alma” de João Jardim (diretor de documentários como "Terra Brasil" e "Free Tibet") e Walter Carvalho (diretor de fotografia de "Abril Despedaçado”). Os dois são míopes: o primeiro usa óculos de 8 graus; Carvalho, 7,5.

"A idéia surgiu de uma vivência muito pessoal minha, eu achava que o fato de eu ter uma miopia muito grande tinha influenciado na minha personalidade e até na minha vida. Achava super interessante essa questão do ver ou não ver. Tudo depende do que a gente já viu antes, que determina a maneira como a gente interpreta o que está vendo. Eu achava muito estranho não se falar disso em cinema ou televisão, achava que dava para fazer alguma coisa emocionante." João Jardim.

“O olho é a janela da alma, o espelho do mundo”. Leonardo da Vinci.

“A maioria das imagens que vemos está fora do contexto e quer nos vender alguma coisa. Ter tudo em demasia significa não ter nada. Temos tanta imagem que não prestamos atenção em nada. As crianças querem ouvir estórias muito mais pelo conforto, do que pela estória em si. A estrutura da estória cria um sentido e a maior parte do tempo a vida não faz sentido. As estórias hoje em dias são excessivas, tudo é excessivo. Temos excesso de tudo, menos de tempo. As estórias simples não são mais enxergadas”. Win Wenders, cineasta.

“Eu preciso de enquadramento. Sem óculos eu via demais, prefiro ver enquadrado”. Win Wenders.

“O olhar deprimido e triste da minha mãe olhando para mim, isso me afetou. Anos depois, eu sofri um paradoxo após uma cirurgia com muito sucesso, meu olho foi corrigido e ninguém notou. Eu fiz um filme sobre a minha experiência na infância, sobre o jeito como minha mãe me olhava. O filme também foi um sucesso e acho que ninguém entendeu. Não era um filme sobre a deformidade facial, a verdadeira lesão não era perder um olho, era a lesão interna”. Marjut Rimminen, cineasta.

“O filme “Jacquot de Nantes” é sobre Jacques Demy, meu marido. Só tive essa visão tão intima dele porque eu tinha medo de perdê-lo. E ele morreu pouco tempo depois da filmagem. Sua pele, seus pelos, parece que não há distância entre o olho do observador e a pele. Só o amor poderia me fazer vê-lo tão perto. Só eu, olhando-o dessa forma, poderia filmá-lo assim. A alteração da visão se dá pelo sentimento e não pelo que é visto”. Agnès Varda, cineasta, sobre a cena de seu marido vestindo um suéter ao lado de Catherine Deneuve.

“Nunca estivemos tão próximos da alegoria da caverna de Platão do que hoje, somos bombardeados por imagens de todo tipo, sombras que cremos reais. Pessoas olhando em frente, vendo sombras, e acreditando que estão vendo a realidade. Perdidos de nós próprios e na relação com o mundo, não seremos nada”. José Saramago, escritor.

“Fiz-me a pergunta: e se fôssemos todos cegos? E no momento seguinte eu logo me respondi que estávamos mesmo todos cegos da razão. Tem explicação, mas não tem justificação”. Saramago.

“Pra conhecerdes as coisas, há que dar-lhes a volta, dar-lhes a volta toda”. Saramago, sobre os pontos de vista de uma coroa que adornava o interior de um teatro em que ia quando criança. Vista de um lado era majestosa, vista por dentro era suja e cheia de teias de aranha.

“O primitivo manda na minha alma. Não entra pelo olho. O olho vê, a lembrança revê. O poeta transfigura o real e isso é o mais importante...acho que eu não disse o que vocês queriam ouvir... rs, rs, rs,” Manoel de Barros, poeta.

"Eu pedi a Deus para Deus me deixar um tempo cego, cego aparente. Porque olhando é tanta coisa ruim que a gente vê, que atrapalha a visão certa, a visão das coisas que a gente quer fazer na vida". Hermeto Pascoal,
músico.

“A gente enxerga mais é com o terceiro olho. A gente escuta mais é com a nuca. Quando você quer prestar atenção em algo que está ouvindo você não aponta os ouvidos pra fonte, mas abaixa um pouco a cabeça”. Hermeto Pascoal.

“Nossa imaginação completa as palavras. Eu queria ler entre as imagens. A maioria dos filmes é emparedada, não dá espaço para sonhar”. Oliver Sacks, neurologista.

“Todas as nossas emoções codificam as imagens. Pode haver uma crise nervosa com a separação ente a visão e a emoção”. Oliver Sacks.

“Sou um narciso sem espelho, é muita sorte”. Eugen Bavcar, fotógrafo cego.

“Michelangelo não viu Moiséis, não o viu atravessar o Mar Vermelho, mas leu sobre ele, por isto pode pintá-lo. A imagem está nas palavras. Não vejo imagens, faço imagens”. Eugen Bavcar.

“Ele fotografa o lado dentro. Quando eu era criança, minha mãe me chamava de minha corujinha”. Hanna Schygulla, atriz, ao ser fotografada por Bavacar com uma coruja no ombro.

“Você nunca se descobre pensando fora de foco. Eu não me penso fora de foco. O mundo é que está ou eu que estaria? Nunca pude olhar muito de perto no espelho. Quando tentava, batia no espelho”. Carmella Gross.

“Descobri com óculos que as árvores eram múltiplas e cheias de folhas e não uma massa”. Antonio Cícero, poeta e filósofo.

“O olhar na janela é outro olho na janela e outro olho na janela até o infinito. Talvez nunca seja na verdade a própria alma”. Antonio Cícero.

“Moças na cama me pediam para tirar os óculos. Eu as achava umas degeneradas”. João Ubaldo Ribeiro, escritor.

"Ninguém me entende, ninguém me escuta, ninguém me enxerga!". Repetem os que desesperadamente sofrem pela falta de percepção dos outros. Aqueles que não conseguem se mostrar e culpam os outros por não conseguirem os ver. Estes são os mais cegos, pois não se enxergam sendo enxergados, portanto não se mostram por não se acharem sendo vistos. Esquecendo que também não conseguem ver os outros, já que tudo é espelho distorcido pela própria visão. Foi isto que se quis dizer quando se disse “não cometerás adultério”, ou seja, não adulterará a realidade. O psicologismo é a cegueira da inteligência, da capacidade de ler a realidade, portanto de enxergar a imagem que se projeta no mundo. E é isto que vemos: nós em tudo. Refletir é se espelhar em si. Leo Lama, escritor, cego, que não disse nada no documentário.

Hanna e a Coruja, em foto de Bavcar.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Doce da Grana

Foto de campanha publicitária da marca dolce&gabbana. "Gang Rape".

O glamour abusivo de cada outdoor que da minha mente eu amputo, volta na memória da cidade que, fingida de limpa, sabe: pra cada putaria há um viaduto. A grife vende de novo o antigo produto: todas as práticas sexuais são estupros. Todas as palavras, todos os relacionamentos, todos os atos são corruptos. As bocetas queimam nos charutos. Todos os amores são putos. Rituais bizarros que duram poucos minutos. E no futuro do pretérito toda atrocidade seria culto: a nenhum cú seria concedido indulto. Nenhum corpo prestaria se não estivesse enxuto. Ninguém mais saberia o que é insulto. A nenhuma violência seria prestado o luto.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

O Comunismo















Espanha,1936.
Comunistas fuzilando a estátua do Sagrado Coração de Jesus. Cadáver de freira retirada de túmulo profanado.

"Morre, estátua maldita!", "Confessa, freira desgraçada!".

O diabo toma partido.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Dois

Foto de autor desconhecido.

Partido, nosso coração está sempre partindo, repartindo nossa falta entre aqui e lá.Sem conseguir tomar partido, sem saber ao certo porque partimos, fomos indo pra sentir vontade de volver. A saudade borda nosso ar estrangeiro que já era assim antes de sermos tão sem espaço. Por amor, por trabalho, por desespero, por esperança é que estamos sempre indo ao avesso. Somos tão estranhas almas.

E se é o próprio diabo que nos une em perfeita subversão? Criaturas partidas escutam até a voz do oco. Que diferença faz a escolha que fazemos quando estamos fragmentados e inseguros?

terça-feira, 3 de junho de 2008

Repouso

Foto de Edu Campos. Que traz seu lugar em seu nome.

O tempo, o espaço e toda a metafísica, o vento, o gorjear dos pássaros, o suspirar do mato, a obra das formigas. Tudo está contido na parada do boi. Olha lá dentro e vê que a tristeza é só o largo de tudo em ruminar sem movimento. Assim quase sem foco, pesada criatura se mistura em tudo e só ali. Moscas sem por que, tontas de si, param: ir? Fazer? Agir? O boi abarca tudo em sua forma parada entre um instante e outro no eterno aberto entre as contingências. Paro. As coisas me olham e olham por mim.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Blume

Foto de José João Name.

A morte é uma flor. Paul Celan.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

No Castelo da tristeza em Processo estanque de Metamorfose

Kafka aos seis anos de idade.

“Poucas vezes a pobre e breve infância concretizou-se em imagem tão evocativa. A foto foi tirada num desses ateliês do século XIX, que com seus cortinados e palmeiras, tapeçarias e cavaletes parecia um hibrido ambíguo de câmera de torturas e sala do trono. O menino de cerca de seis anos é representado numa espécie de paisagem de jardim de inverno, vestido com uma roupa de criança, muito apertada, quase humilhante, sobrecarregada com rendas. No fundo, erguem-se palmeiras imóveis. E, como para tornar esse acolchoado ambiente tropical ainda mais abafado e sufocante, o modelo segura na mão esquerda um chapéu extraordinariamente grande, com largas abas, do tipo usado pelos espanhóis. Seus olhos incomensuravelmente tristes dominam essa paisagem feita sob medida para eles, e a concha de uma grande orelha escuta tudo que se diz.” Walter Benjamim em Fraz Kafka, a propósito do décimo aniversário de sua morte.

“Era como se a vergonha devesse lhe sobreviver...”. Franz Kafka em O Processo.

Tristeza de cão

Foto de autor desconhecido.

Não ter um rosto entre os soldados.

Não ser um rosto entre os soldados.

Não ter um gosto entre os soldados.

Não ter um posto entre os soldados.

Não ter composto entre os soldados.

Não ter encosto entre os soldados.

Não ser encosto entre os soldados.

Estar deprimido entre os soldados.

Estar comprimido entre os soldados.

Estar dividido entre os soldados.

Estar esquecido entre os soldados.

Estar em marcha entre os soldados.

Estar em marcha contra os soldados.

Ser uma mancha entre os soldados.

Estar machucado entre os soldados.

Ser soldado vivo entre os soldados.

Ser um sol dado entre os soldados.


Ser um cachorro entre os homens.

Ser uma árvore entre as almas.

Ser um morto entre os mortos.

Ver um fantasma entre os homens.


Estar trôpego na tropa.

Estar preso na trompa.

Ser trauma na turma.

Ser trânsito no tráfego.

domingo, 25 de maio de 2008

Tempestade de Promessas Quebradas

Foto de autor desconhecido. Homenagem ao blog “Admiradores de Varais”.

Lento no luar lá fora, na noite lenta, o vento agita coisas que fazem a sombra mexer. Não é talvez senão a roupa que deixaram estendida no andar mais alto. Mas, a sombra em si não conhece camisas e flutua impalpável, num acordo mudo com tudo.
Fernando Pessoa, fragmento 145 do Livro do Desassossego.

É melhor quebrar ossos do que promessas. Provérbio chinês.

Aqui exponho o que me foi projetado, se estou perdido em confusões, sou o único culpado. Perdi várias oportunidades de ficar calado. Mesmo assim sigo contando e sei que estou sendo contado. São minhas as visões, não estão em nenhum livro revelado. Talvez sejam apenas alucinações de um coração magoado. Talvez sejam sonhos de alguém que jamais deveria ter sonhado. O que vi está visto e minha cegueira é a prova do que foi visado.

Vi uma tempestade de promessas que não foram cumpridas caindo do céu como se todos os anjos estivessem revoltados. E vi palavras queimando bocas como se os verbos do amor não pudessem ser pronunciados. E vi arcanjos baixarem o que estava em cima e vi o mar generalizado. Vi que as águas eram correntezas de corações engasgados. Vi nadarem sobre nossas cabeças tubarões caçando tolos apaixonados. Vi beijos falsos serem comidos pelas terríveis línguas de pássaros assassinados. Plantas, flores, bichos, gentes, prédios, carros: tudo e todos pareciam estar sendo cobrados. Entre os postes, um imenso varal de enforcados. Entre os dentes dos demônios: ossos quebrados. Plantas, flores, bichos, gentes, prédios, carros: todos estavam sendo enxergados. Cada qual com a medida dos seus próprios olhos e com o reflexo do olhar Daquele que olha tudo que é olhado.

Com meus olhos eu vi e com os próprios fui fotografado. Em verdade, são tais visões que me têm revisado. Vi que vendo eu minto e não sinto o sentimento que não deve ser verbalizado. Não sei tocar, nem me deixar ser tocado. Vi que o sentir elevado está longe do que eu tenho buscado. O que eu digo ser, é o contrário do que eu tenho falado. Entendi que cada “eu te amo” que eu disse me será cobrado. Assim como todos os “eu estou apaixonado”. Não sou peixe, não sou pássaro, não me sinto planta, não me sinto flor, nem bicho, nem gente, nem prédio, nem carro. Vi o horror dos que não cumprem promessas e dos que traem o que lhes é confiado. Vi que chovia e eu não estava molhado, percebi meu sorriso chamuscado. Vi que o que eu tenho guardado não é segredo e está estupidamente trancado. E assim eu me fui revelado: olhei para mim e não me vi, porque eu ainda não fui criado.

31/12/2000. Passagem do ano em Lisboa.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

No colo de uma raiz

Foto de Andréita Dorim.

"As árvores contorcem-se, dobram-se, erguem-se de novo num grande estrondo e esticam-se, como se quisessem desenraizar-se e fugir. Não, não cedem. Dor de raízes e de folhagem quebrada, feroz tenacidade vegetal não menos poderosa que a dos animais e dos homens. Se estas árvores começassem a andar, devastariam tudo o que lhes impedissem a passagem. Preferem ficar onde estão: não têm sangue nem nervos, mas seiva, e em vez da cólera ou do medo, habita-as uma obstinação silenciosa. Os animais fogem ou atacam, as árvores ficam quietas, presas no seu lugar. Paciência: heroísmo vegetal. Não ser leão nem serpente: ser azinheira, ser aroeira". Octávio Paz.

"Para veres o mundo em um grão de areia

E o céu em uma flor silvestre,

Segura a imensidão na palma da tua mão

E a eternidade em uma hora". William Blake.

O limitado da forma ao infinito. Olha a margarida e vê ali no foro de sua existência um padrão. O que diz a concha assim em suas linhas? Há uma perfeição de copa de árvore em tudo que só as crianças. Vê: há em cada coisa algo se mantendo um com o universo. Revela-se o maior do que nós, o Mistério em tudo e ainda assim em nós: reflexos. E se eu te disser que estou me correspondendo com um girassol? A medida do imensurável é um modelo a se seguir, vejo e penso. Não sei dizer o que senti ao beber dinergia das plantas. Escuta, é o Buda dizendo o Sermão da Flor. Eu te falei que a proporção é um relacionamento justo? Já ouviu falar do Corte de Ouro? As hélices de folhas giram meu coração. Olha, é o Rumi dançando o Sama e é o calor do colo de uma raiz!

Estreito caminho da sombra

Foto de Mathew Scherfenberg

Envolta em mar de mênstruo a mostra do seu cinema

Oferece a outra face, a fenda estreita, o aperto.

Moça humana da boca do reto diz segredos curvos.

Seu corpo manchado de luz e o escuro do meu cunho.

A porta dos fundos, a porta dos serviçais.

Seu olho mais profundo me observa, me devassa.

Seu esfíncter me separa de minha própria sombra.

O escroto medo pesa em meu barco

Em frente ao beco do tesouro fétido.

Eternamente entregue ao sacrifício,

No entanto, ninguém ao orifício,

Estará você para sempre proibida de se martirizar.

domingo, 18 de maio de 2008

Arte

Foto de soldado russo. Autor desconhecido.

"Vai, vai, vai, disse a ave: o gênero humano não pode suportar muita realidade". T. S. Eliot: Quatro Quartetos.

Por este não suportar, por este excesso de coisas é que ele precisa Dela, por enxergar Nela um instrumento de superação dos hábitos de sua existência e, ao mesmo tempo, de aproximação vertical com uma vida mais profunda.

Assim, Ela é requisitada no intimo dos corações.

Amar-Te.

Reconstruir Teu corpo,

Devolver-Te o dissolvido,

O volátil, o imponderável,

O informe.

Informar-Te de forças.

Não mais um corpo

A cada dia, tantos espelhos.

Paramentar-Te com olhos.

Entre tantas, dar-Te a mão.

Separar-Te.

Abrir-Te os poros, os pontos.

Montar Teus ossos,

Teu quebra-cabeça.

Colar Teus cacos,

Untar Tuas peças.

Ente Tuas pernas,

Pulsos,

Respirar-Te.

Soprar-Te o peito.

Beijar-Te a boca.

Inconcluir-Te.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

HDR

Foto de Paulo Prestes Franco, especialista em HDR. Velha estação de trem em Paranapiacaba.

Observemos, meus companheiros de solidão: o que a foto vê que o olho humano não vê? O que o olho vê que a foto não revela?

Então, assim na era das câmeras digitais, surge um novo olhar: a técnica de mesclar três ou mais fotos em um mesmo registro com diferentes exposições.

HDR é a sigla para High Dynamic Range (Grande Alcance Dinâmico). Os sensores das câmeras digitais conseguem captar as colorações dentro de uma faixa teoricamente limitada (LDR - Low Dynamic Range). Isto faz com que em zonas de muito contraste, algumas informações de cores sejam perdidas.

Há uma pessoa parada em uma janela durante o dia, é sua amada e você quer fotografá-la. Você está dentro do quarto com pouca iluminação. Para que o interior do quarto apareça é necessário aumentar a exposição. Você tira a foto. A foto estoura, porque o fotógrafo elegante não usa flash.

Com o HDR é possível equilibrar estas exposições de forma que na imagem se possa ver tanto sua amada quanto o que está lá fora, através da janela. A partir de um mesmo registro com diferentes exposições, o programa de software faz uma mescla das fotografias tiradas e posteriormente permite um ajuste das tonalidades, um mapeamento de tons.

Surgem imagens sombrias, efeitos que lembram cartoons, certo psicodelismo surreal, dizem alguns. Outros falam em cores mais próximas da realidade.

Seria a técnica de HDR um processo que artificializa a arte de fotografar?

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Entre

Foto de Sabine Weiss

"Para um homem ver-se a si mesmo, são necessárias três coisas:olhos, espelho e luz....que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo?" Padre Vieira - Sermão da Sexagésima.

Corri para alcançar o metrô, mas lá no fundo, um.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Inconsciente ótico

Foto de Sabine Weiss, fotógrafa Suiça (1924-), Restaurat Coquet, Paris, 1954.

Sabine escreveu: “Eu gosto muito deste diálogo constante entre minha máquina e meu sujeito, isto é o que me diferencia de alguns fotógrafos que não procuram este dialogo e que preferem distanciar-se do seu sujeito.”.

De que ando por meus passos perseguido, pesos, possíveis presságios. Sempre, sempre sem, sempre aqui no futuro do pretérito. Se estou tomando café no balcão, se estou servindo, se estou passando de carro, se te dou um beijo de adeus ou se sou por você ardentemente beijada. Se sou um desses homens, se sou uma dessas mulheres, se sou algo, se sou o fotógrafo, se estou desse lado ou do outro da calçada. Se vi o que se vê, se viu-se o que se veria, se víssemos, se nos veriam, se nos verão. Se fosse aqui, em algum lugar teria sido, se foi, se seria, se tiver mesmo sido. Com quem, qual quem, alguém, algum, ninguém. E o que era ainda é? O que ficou preso na fotografia, o que se libertou, o que está presente pra quem vê, o que está e não se vê, o que não se veria, o que ficou ausente, a presença do que não há, do que não é, do que não teve permissão, do que não foi visto, do que foi permitido, do que, de quem. O que foi perdido, o que foi encontrado, o que se encontrou, o que se encontraria, o que seria o encontro. De que não é lembrança, de que não me pertence, de que não foi comigo, de que não fui eu e ainda assim meu, seu, nosso, Dele. De onde veio? De onde vim? De onde se vem? De onde se vai? De que não é preciso e é assim tão justo. De que é só um instante e por isso mesmo eterno retorno. De lá pra cá e de cá aqui, longe, como todos os pertos parecem ser, perto, como todos os longes são: melancolia. E ela sendo plástica e talvez só palavra, que permeia tudo, que penetra em falta, rainha das ausências, preta e branca ou cinza, sempre como que se retirando, posta, postulada e postiça, invisível a olhos nus, cobrindo os corpos, pela lente, pele lenta, ela está. Se até assim, na sua frente:saudade.

Soldado

Foto de Robert Capa, nome artístico do fotógrafo húngaro Andrei Friedmann (1913-1954).

Só morre quem sente o abraço. Não adianta abrir os braços e deixá-los assim: ao aberto. Há que se abraçar a Dama do Descanso. Quem te arrancou o amplexo, Miliciano? Quem em imensa crueldade o deixou suspenso: membros escancarados, cabeça tombada no espaço, lábios tortos, garganta engasgada? Miramos o oco do grito mudo de sua arma, goela calada, apontada para o céu, já não mira mais: admira-se que estará para sempre na mão de sua estátua ferida. Quem te deixou para sempre assim: sem leito, sem sepultura, sem o envolvimento do chão? Quem, Miliciano Legalista Frederico Borrell Garcia, quem te deixou em vôo estático, para sempre ferido à bala, sem repouso?

O fotógrafo, impiedoso, o deixou assim: suspendido na pausa da eternidade.

Só sua sombra sobre o solo sossega.

Vagina

Foto de Sybele Badran. Sybele é designer gráfica, finalizadora, ilustradora.

Passasse eu por estreita frincha:
Conhecesse a seiva de suas entranhas:
Cruzasse o arco do contorno:
Fosse tronco nos músculos de seu núcleo:

Observo: meus olhos são dois sóis a manchar o concreto do seu corpo.
A arquitetura do anel dos seus lábios:
Dentro: mais profundas e verdes: outras vaginas, mais selvagens, mais virgens.
Mata: espreitam-me suas raízes.

Enfrentasse mistério vagem, com a espada de me perder entre seus cortes, entre suas faces riscadas no oculto das sucessivas gretas: não temesse os vagidos silenciosos, reflexos das mudas do meu peito.

Observo: fotografo o que espera a penetração.

O Fotógrafo

Henri Cartier-Bresson, fotografo francês (1908-2004) .

Mútuo reconhecer instantâneo: a vida vira foto quando reconhece o fotógrafo e este reconhece a vida.

Ele ficava o dia todo em frente ao mundo pronto a captar um triz. Fazia amor com Leica até que sumisse e só ela. Tirava a foto quando conseguia virar o que fotografava. Com um estilete mudo, cortava uma fatia do visível. O momento decisivo, ele dizia, é aquela fração de segundo em que todos os elementos de uma situação rotineira entram em perfeita harmonia.

Subamos a escada caída para o infinito do espelho, então.

E fica a prova concreta de que se pode andar sob as águas.

Que tudo que está em baixo é foto do que está em cima.

E a vida, é pra que lado afinal?

terça-feira, 6 de maio de 2008

Planos

Foto de Kity Feo. Kity é cineasta e fotógrafa.

Tomássemos o último avião e a boca do céu quase fechasse. Viajássemos assim no sorriso que restasse das trevas dos últimos dias. Aonde iríamos, meu amor? Cruzássemos o topo da cruz elétrica ou parasse assim para sempre nosso aeroplano. Para sempre assim nossos planos, flutuando plenos entre o pior de nós e o que voasse. Sem que tais vapores escuros nos tocassem, em vôo suspenso, em repouso eterno.

Nunca pousássemos nos dentes das fumaças.

Pontes e Meadas

Foto de Paulo Prestes Franco. Paulo é cineasta, videomaker, editor de imagens e tudo mais.

Quanto mais uma conversa é realmente uma conversa, menos o seu desenrolar depende da vontade de um ou de outro parceiro. Assim, portanto, a conversa efetivamente mantida jamais é a que queremos manter. Pelo contrário, em geral é mais exato dizer que somos arrastados, para não dizer enredados, numa conversa. Hans-George Gadamer, em 'Verdade e Método'

“Fotografia e Saudade”, o blog, surgiu de uma brincadeira em meu outro blog "Companhia Solitária" (www.leolama.blogspot.com). Comecei a escrever legendas, ou algo assim, para as fotos preferidas de minha amiga, a cineasta Kity Feo. Resolvi ampliar esta tentativa de se criar um diálogo entre imagens falantes e palavras imagéticas aqui neste novo espaço. E já começo a pensar:

Tudo é linguagem? Tudo que existe é falante? Se assim for, as imagens são palavras visuais. Então, para que legendá-las se já dizem? O que dizem? Ver é relembrar? Dizer é traduzir? Verter para outra língua é adulterar? Recriar? A tradução carrega em si uma saudade, uma melancolia do que era, do que foi primeiro. Assim é a fotografia, como a palavra, uma reminiscência, a suspensão de um momento, um convite à recordação, à revisão.

São muitos os sentidos tanto das palavras como das imagens. O que vemos, ouvimos e lemos, é apenas um recorte possível. Portanto as atividades de ver, ouvir, ler e até sentir, podem estar subordinadas à intuição de que há outras percepções além daquelas que percebemos. Nada é definitivo. Um olhar, uma palavra, um gesto, é uma perspectiva, um ângulo. Cada percepção deve abrir espaço para outra, deve ser uma ponte que nunca acaba. Cada ângulo, cada olhar, cada dizer, deve supor outro até que todos os sentidos sejam possíveis, como uma fotografia caleidoscópio. Que tal?

Meu intento é brincar com a beleza (diferenciando o belo do bonito) das imagens e das palavras, evidenciando-as de forma poética, que talvez seja a única forma de nos salvarmos da mudez árida que se anuncia, causada pelo excesso de comunicação.

Diz mais quem silencia. Diz algo que não fecha.